Acerca de
É possível, ensinar a escrever literatura?
Vamos, à partida, dizer que não, que achamos que não é possível. Logo aqui se afirma o paradoxo: Se assim é, por que desenvolvemos a Desmanche?
Primeiro, o que vimos desenvolvendo não é uma “oficina de escrita”. Não por acaso a chamamos “Exercícios e práticas de criação literária”. Ou seja, a nossa incidência não é sobre a técnica (mesmo que a técnica e a teoria vão surgindo naturalmente ao longo das sessões e isso sim possa ser ensinado, ou melhor, transmitido). O nosso ênfase é a criação. Procuramos acompanhar o enfrentamento desse abismo delicado - não apenas o de quem participa na oficina, o nosso também, pois nos acontece em cada página. Procuramos criar um espaço onde o desenvolvimento da relação com a criação, que é tanto desejo quanto pavor, e que é individual, até solitário, possa acontecer também no contexto da Desmanche. Evitamos análises sobre por que escrevemos ou não escrevemos, elaborações inócuas sobre ritmos - são únicos-, ou outras obsessões sem resposta.
A escrita mente muitíssimo - fá-lo com implacável verdade. É esse pacto entre quem escreve e quem lê que torna a mais fantasiosa ficção dilacerante realidade. Que faz um breve verso reverberar infinitamente. Por isso, a importância de se desmanchar, repetidamente. Verdade, mentira, verdade, ilusão, desmembramento. A literatura vai-se fazendo, com o tacto. Não se subjuga ao olhar do outro, a "parecer bem", ou a justificações pueris. Não existe para agradar, nem para desagradar, as palavras são demasiado frágeis e rebeldes para carregar polícias. Na prática literária, é importante não temer sua própria complexidade nem tentar justificá-la. Difícil equilíbrio. Parece-nos igualmente importante ir desvelando a singularidade que cada corpo escrevente guarda como mistério. É essa singularidade que procuramos acompanhar.
O que podemos então realmente fazer? Um gesto. A servidão da escrita é um gesto de desconfiança. Ela serve ao que desconfia em nós, à nossa singularidade. Só o que é singular em nós é capaz de desconfiar de nós. E se dizemos nós, não é para nos referirmos ao universal, mas ao nós que constela todos os eus. Quando percebemos que toda a música de nossos eus vaga sem maestro, que é servil de associações involuntárias, emoções, clima, exterioridade, interioridade, memórias, sensações, bom humor e mau humor, etc., quando percebemos isto então podemos desconfiar da nossa capacidade de fazer e somente assim a pergunta se abre em sua inteireza e toda a convicção de possibilidade tem de ser eliminada como um fogo-fátuo na natureza. No gesto da desconfiança a possibilidade do fazer é retomada, porque libertou-se da tirania dos autômatos semânticos e existenciais. Nesse estado cada palavra aparece sempre como a primeira vez de uma palavra porque o que de fato ocorreu foi a criação de um novo centro de gravidade, situado agora em nossa singularidade.
É por isso que cada corpo escrevente orbita ao redor da mesma ferida (alguns dizem tema, mas um tema não é uma ferida; há feridas de mil temáticas, como há feridas monotemáticas). Não se trata de uma escolha arbitrária, mas da percepção espontânea ou gradual dessa singularidade. O gesto da escrita é, nesses termos, uma rendição. Quem escreve é sequestrado por sua singularidade e levado até os limites possíveis da linguagem. A partir desse ponto é que ele sente que pode fazer algo, isto é, re-escrever a história das palavras.
Consideramos ainda que escrita é perpétuo labor, sempre incompleto e sempre enigmático, daí estimularmos a prática e a elaboração de pensamento como paralelos que se retroalimentam. Partilhamos inspirações, inquietudes e rotinas. Partilhamos também as nossas interrogações e experiências, o pensamento que vimos elaborando sobre elas, a que se vem somando o de quem participa, e autorias que nos inspiram. Cada encontro da Desmanche, por vezes, assemelha-se a um trecho de diário aberto ao mundo. A confiança e o pacto de cumplicidade entre cada participante cria as condições propícias para que cada pessoa se sinta confiante ao expor as vulnerabilidades que a escrita evoca.
É sempre um corpo que escreve. A partir desse princípio, consideramos que um corpo que escreve cuida de si, no sentido amplo proposto por Hadot, e por outros e outras. Cuida de si por que tem abertura, por que escuta, por que se exercita espiritualmente, por que pulsa na relação com o outro e com a pólis do universo. Por que desenvolve a atenção quase médica que propõe Yourcenar, por que persegue a palavra tremendo de ousadia. Afinal, o movimento literário é o de uma onda, disse, maravilhosamente, Pessoa.
Por tudo isso, para nós é pouco relevante a experiência que quem participa tem com a escrita em si. Podem ser escritoras e escritores experientes, pessoas que pensam em vir a sê-lo, ou pessoas em busca de experimentar a sua relação com a escrita, que é a mesma da vida.